Certa vez ouvi alguém dizer que toda estória tem três lados: O lado de quem conta. O lado de quem ouve e o lado da verdade.
No Brasil, há muito vem se utilizando o termo democracia para referendar todo e qualquer posicionamento político, social e jurídico.
Os discursos inflamados à sociedade esbarram sempre na noção do que se definiu por democracia.
Dizem que tudo faz parte do processo democrático, que por sua vez, tem sido posto por muitos como um processo já consolidado.
Para definir democracia, necessário é estabelecer sua antítese, mais precisamente o que se denominou por “totalitarismo”, regime político onde não existe liberdade individual, ou seja, tudo fica subordinado à autoridade do governo.
Democracia, ao contrário, é o regime do povo, pelo povo e para o povo conforme ensinou Abraham Lincoln, vale dizer, regime onde o povo manda.
Estabelecida esta premissa, consolida-se um lado da estória, ou seja, de que o Brasil esta vivendo uma democracia conforme diuturnamente vem sendo pregado por seus comandantes, o que equivale a dizer que todas as aberrações e acertos praticados pelo governo (leia-se três poderes) estariam sendo praticadas conforme vontade popular, afinal, isso é democracia.
Esta conclusão encontra respaldo na Constituição Federal, mais precisamente na primeira parte do parágrafo único de seu artigo 1º, quando definiu que “todo o poder emana do povo”.
Então, o que é de fato o Poder ou o que deve ser o Poder?
A resposta para estes questionamentos encontra respaldo no outro lado da estória.
A filosofia política clássica nega que um poder apenas forte, independentemente do fato de estar em condições de durar, possa ser justificado, vale dizer, nesta situação não haveria como distinguir o poder político do poder de um bando de ladrões.
Santo Agostinho já dissera que “sem a justiça, o que seriam de fato os reinos senão bando de ladrões? E o que são os bandos de ladrões senão pequenos reinos?”.
Relevante é a passagem entre Alexandre e o pirata, onde, trocando farpas, o rei indagou àquele o motivo pelo qual infestava o mar, o que lhe respondeu com audaciosa liberdade: “Pelo mesmo motivo pelo qual infestas a terra; mas como eu faço com um pequeno navio sou chamado de pirata, enquanto tu, por fazê-lo com uma grande frota, és chamado de imperador” (De civitate Dei, IV, 4, 1-15).
Com o advento da lei, e este é o ponto que interessa neste lado da estória, a legitimidade do poder ficou condicionada à constituição da autoridade, que por sua vez estabelece a legitimidade do governo, capaz de impor um ordenamento jurídico coercitivo, respeitado internacionalmente, tendo Norberto Bobbio (Estado, Governo, Sociedade. Para uma teoria geral da política. Ed. Paz e Terra, 16ª reimpressão) a definido como “um puro e simples estado de fato”, consubstanciado na definição de Estado, “ordenamento jurídico destinado a exercer o poder soberano sobre um dado território, ao qual estão necessariamente subordinados os sujeitos a ele pertencentes”.
Assim sendo, o segundo lado da estória encontra sua verdade na segunda parte do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, que legitima o exercício do poder por meio de representantes eleitos, vale dizer, por meio do voto, na simples definição de que a autoridade somente estará legitimada a agir se autorizada pelo povo, através do voto, com valor igual para todos. Nisso consiste um poder legítimo.
Doravante, o terceiro lado da estória resulta da análise da interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal acerca da vigência da Lei Complementar 135/10, também conhecida como “Lei da Ficha Limpa”, onde, por necessidade de se responder ao clamor público, contrariando totalmente as verdades anteriormente expostas, “permissa vênia” definiu sem tempo a vigência da referida lei, fixando-a em total desrespeito à vontade do eleitor, onde, após a realização das ultimas eleições, seria imprescindível ver respeitado sua vontade, fazendo com que seus efeitos irradiassem apenas para o futuro, ainda em respeito à segurança jurídica, à soberania popular, em respeito ao verdadeiro detentor do poder, em respeito ao povo.
O eleitor tinha o direito de comparecer às urnas com a segurança jurídica de que seu voto seria respeitado, que seu voto não seria considerado lixo. Toda e qualquer decisão em sentido contrário deveria ter sido tomada antes das eleições a fim de se legitimar a vontade do eleitor.
Segundo Norberto Bobbio (ob. cit), “do ponto de vista de uma definição formal e instrumental, condição necessária e suficiente para que exista um Estado é que sobre um determinado território se tenha formado um poder em condição de tomar decisões e emanar os comandos correspondentes, vinculatórios para todos aqueles que vivem naquele território e efetivamente cumpridos pela grande maioria dos destinatários na maior parte dos casos em que a obediência é requisitada. Sejam quais forem as decisões. Isto não quer dizer que o poder estatal não tenha limites. Justamente Kelsen, além dos limites de validade espacial e pessoal que redefinem em termos jurídicos os dois elementos constitutivos do território e do povo, leva em consideração outras duas espécies de limites: os limites da validade temporal, pelo qual uma norma qualquer tem uma validade limitada no tempo que transcorre entre o momento da emanação (salvo se a ela atribua efeito retroativo) e o momento da ab-rogação, e os limites de validade material, na medida em que existem: a) matérias não passíveis de serem submetidas a uma regulamentação qualquer, donde o velho ditado de que o parlamento inglês pode fazer tudo menos transformar o homem em mulher (um exemplo, para dizer a verdade, hoje não mais apropriado), ou a afirmação de Spinoza (1670, cap. VI) de que mesmo o soberano que tenha o direito de fazer tudo o que queira não tem o poder de fazer com que uma mesa coma erva; b) matérias que podem ser reconhecidas como indisponíveis pelo próprio ordenamento, como acontece em todos aqueles ordenamentos em que está garantida a proteção de alguns espaços de liberdade, representados pelos direitos civis, nos quais o poder estatal não pode intervir, ao ponto de uma norma que mesmo sendo validamente posta os violasse poder ser considerada como ilegítima por um procedimento previsto pela própria Constituição”.
Assim, tem-se que a verdade encontra-se estampada neste terceiro lado da estória, mais precisamente a de que o país está longe de se definir como um país democrático, que respeita a vontade de seu povo; que suas instituições são submissas a valores extrínsecos ao ordenamento jurídico e, sobretudo, de que nem sempre “o povo tem o governo que merece”. Faltou senso neste lado da estória. Se bom ou ruim, só o tempo irá dizer.
SMJ, esta verdade é a que prevalece.
Dr. Caio Marcio de Britto - Juiz de Direito – Especialista em Direito Tributário pela UFMG – Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais UMSA
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